Mapeamento dos quintais marítimos da Póvoa de Varzim. Os arquitetos do “mar poveiro”

Autoria: José Pedro Fernandes

Orientação: Marta Labastida Juan

Universidade do Minho | Mestrado integrado em Arquitectura

Menção Especial

Memória descritiva

Este trabalho concentrou-se na compreensão da expressão espacial destes «quintais marítimos» e na sua representação em mapas e esquemas que tornem visível as respetivas localizações, dimensões, medidas e escalas, bem como a sua relação com as dinâmicas de urbanização terrestre.

O significado da palavra «quintal» está habitualmente associado a um terreno (horta, logradouro ou jardim) nas traseiras de uma casa. Quais são os significados da palavra no contexto da paisagem marítima? Há uma visão comum do mar como uma mera linha no horizonte e, a linha de costa, separa dois territórios muitas vezes vistos como independentes. A terra tem sido profundamente estudada pelo campo disciplinar da arquitetura, no entanto, o que existe abaixo da linha de água do mar, permanece como um «mundo silencioso»,[1] que se conhece cada vez melhor no campo da biologia e de outras ciências do mar[2]. Em arquitetura, no urbanismo e na geografia, o mar ainda aparece de uma maneira pouco explícita. Para compreender a continuidade mar/terra precisamos de usar fontes e registos, como cartas náuticas e imagens de satélites, provenientes de outros campos do saber (como a geologia e a hidrografia) e integrar estas informações numa cartografia comum. Mas também é fundamental incorporar sobre esta base os registos precisos e sensíveis daqueles que vivem do mar: os pescadores.

Neste trabalho, a partir da experiência pessoal e de entrevistas realizadas a pescadores da Póvoa de Varzim, foi possível perceber e interpretar como a utilização da informação transcrita em cartas está diretamente ligada à evolução dos dispositivos empregues (primeiro analógicos, depois eletrónicos), com consequências práticas nos modos e nas formas de apropriação do território marinho. Assim, analisa-se vários momentos desta atividade na Póvoa de Varzim. Na primeira parte, analisamos e descrevemos os procedimentos de elaboração e uso dos mapas mentais «dos mares» e das toponímias criadas e transmitidas no âmbito da pesca tradicional. Confrontamos fontes documentais e bibliográficas (sendo a maioria boletins culturais que registam a evolução do património local), com as memórias de ex-pescadores. A principal fonte de informação é a história oral —neste trabalho foi protagonista o mestre Albano «Espojeiro», ex-pescador da última geração da comunidade piscatória tradicional da Póvoa de Varzim. O mestre Espojeiro partilhou os seus conhecimentos, anotações e cartografias pessoais, e foi através delas que foi possível reconstituir e representar os processos de criação «dos mares» (temporários) da pesca tradicional. Na segunda parte, aborda-se a transição para a pesca contemporânea, analisando os mapas digitais dos «quintais marítimos» e os tipos de espaço criados. Através da informação empírica recolhida, observando in situ as práticas da pesca polivalente (contemporânea) ao longo de seis dias embarcado, foi possível representar o processo de criação de um sistema de «quintais marítimos».

A atividade piscatória desenvolvida na Póvoa de Varzim adaptou-se à natureza do território marítimo, apropriando-o através de várias artes de pesca e gerando nesse processo mapas mentais e digitais. A pesca que hoje é levada a cabo, que define um sistema de «quintais marítimos», corresponde a um processo de territorialização (permanente) que permite uma leitura cruzada das actividades entre a terra e o mar. Através do sistema de quintais o desenvolvimento das espécies é simultaneamente estimulado e controlado, preservando relações fundamentais entre presas e predadores, e respeitando interações entre diferentes níveis da comunidade ecológica. Este método, capaz de potenciar novos ecossistemas, permite também reconhecer uma espacialidade específica do mar através das artes de pesca. Essa espacialidade é visível através das boias de sinalização que determinam a apropriação humana e produzem uma cartografia que permite uma leitura específica desse território. Interessa constatar a reciprocidade que existe entre as artes da pesca, os recursos marinhos, as formas e dispositivos de mapear estes processos e os modos de territorializar o mar.

[1] Le monde du silence é um documentário realizado por Jacques Costeau e Louis Malle em 1956. Foi um dos primeiros documentários a incluir imagens subaquáticas coloridas e, além da Palma de Ouro do Festival de Cannes, conquistou um Oscar da academia de Hollywood.

[2] Andrea Mustain, “Mysteries of the Oceans Remain Vast and Deep” in LiveScience, 2011. Online edition accessed 12 April 2020.